Doença Renal Crônica: Artigo do Medicina Atual explica do diagnóstico ao tratamento

Doença Renal Crônica é o tema do artigo do Medicina Atual desta semana. De autoria do nefrologista e doutor em Medicina pela UNIFESP, Marcus Gomes Bastos, um dos mais renomados especialista da área, o texto tem como objetivo abordar as principais questões da doença.

O Revisamed-Revisional em Medicina disponibiliza o conteúdo na íntegra. Uma forma de te ajudar a se preparar para a Residência Médica ou mesmo se aprofundar no tema na faculdade.

O Revisamed também disponibiliza, ao final do artigo, um Caderno Digital de perguntas e respostas. Dessa forma, além de obter conhecimento, você pode testar o conteúdo assimilado.

Pessoa com dor na região dos rins
Pessoa com dor na região dos rins

Introdução

A doença renal crônica (DRC) é prevalente e comumente subdiagnosticada. Determina alto impacto financeiro no sistema de saúde e, frequentemente, está associada à mortalidade aumentada em todas as idades, em particular quando a taxa de filtração glomerular (TFG) diminui para valores inferiores a 60 mL/min/1,73 m2. Assim, a identificação precoce e a implementação de medidas preventivas de progressão são fundamentais para o manejo adequado da DRC.

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Definição da doença renal crônica

A definição atual da DRC constitui um dos grandes avanços da nefrologia e é aceita mundialmente. A categorização da doença é baseada na TFG estimada (TFGe) e um marcador de lesão do parênquima renal (por ex., proteinúria e/ou hematúria e/ou documentação de alteração renal em exame de imagem ou biópsia renal). Por definição, tem DRC todo indivíduo que apresentar uma TFG <60 mL/min/1,73 m2 e/ou um marcador de lesão do parênquima renal presente por um período igual ou superior a três meses.

O prognóstico, a evolução e o manejo da DRC estão relacionados ao estágio da doença. As diretrizes do KDIGO (2012) disponibilizam uma classificação estruturada da CKD baseada na albuminúria e na TFG, assim como sugestões de ações a serem implementadas (Tabela 1).

Diagnóstico da doença renal crônica

Taxa de filtração glomerular

A TFG normal é de 120 mL/min/1,73 m2 para os homens e 110 mL/min/1,73 m2 para as mulheres. De maneira prática, TFG pode ser estimada ou determinada pela depuração da creatinina. A equação CKD-EPI, baseada em idade, gênero e creatinina, permite estimar a TFG, seja a partir de nomogramas ou por meio de aplicativos. O resultado obtido deve ser multiplicado por 1,16 em casos de pacientes negros dos Estados Unidos da América.

Tabela 1: Categorias da doença renal crônica e plano de ação recomendado

Categorias da doença renal crônica e plano de ação recomendado
* Lesão renal representada por albuminúria e/ou hematúria e/ou alteração em imagem renal e/ou alterações histopatológicas; TFGe (em mL/min/1,73 m2)= Taxa de filtração glomerular estimada; TRS= Terapia renal substitutiva; DRC= Doença renal crônica e DCV= Doença cardiovascular.

A depuração da creatinina é obtida aritméticamente relacionando a concentração da creatinina urinária total e a concentração sérica em um período de 24 horas, considerando peso e volume corporal. Valores confirmadamente diminuídos expressam queda da filtração glomerular e declínio funcional renal.

A TFG diminui com a idade, mas o nível de queda normal não é claro. A diminuição da TFG decorrente de patologia renal é comum em indivíduos idosos, independentemente do estágio da DRC e, assim, o manejo não deveria ser influenciado somente pela idade. Por exemplo, pacientes idosos com TFGe estável >45 mL/min/1,73me sem outra evidência de lesão renal dificilmente desenvolverão as complicações decorrentes da DRC.

Proteinúria

A proteinúria é reconhecidamente o indicador mais importante da DRC e níveis muito elevados (>1 g/dia) indicam maior risco de progressão e complicações da doença. A proteinúria é um componente importante na categorização da DRC e deveria ser quantificada pela relação albumina/creatinina (para níveis urinários até 300-500 mg/dia) e pela relação proteína/creatinina ou proteinúria de 24 horas (para níveis urinários acima a 500 mg/dia). Com relação à determinação da proteinúria, a quantificação da albuminúria apresenta menor variabilidade.

Urinálise (avaliação da sedimentoscopia)

Embora a TFG e a proteinúria sejam os marcadores mais frequentemente utilizados na identificação da DRC, a avaliação minuciosa da sedimentoscopia à urinálise apresenta papel importante no diagnóstico da doença de base (Tabela 2). A observação de células, cilindros e cristais à sedimentoscopia pode indicar a etiologia da doença renal subjacente. Por exemplo, sedimento urinário com hemácias dismórficas, cilindros hemáticos e mais de 5% de acantócitos é altamente sugestivo de glomerulonefrite. Por outro lado, a presença de cilindros leucocitários e leucocitúria num contexto clínico adequado sugere pielonefrite aguda ou nefrite intersticial aguda. A Tabela 2 mostra os achados urinários em algumas causas comuns de DRC.

Ultrassonografia

A ultrassonografia (US) do trato urinário é considerada o exame de imagem de primeira linha na avaliação de indivíduos com doença renal não diagnosticada. A diminuição da TFG presente por longo período de tempo, geralmente, se associa com a redução do tamanho renal e ecogenicidade cortical aumentada, enquanto, nas disfunções agudas, os rins mantêm o seu tamanho, sem alterar ecogenicidade do parênquima. A US permite diferenciar as disfunções renais decorrentes das doenças renais intrínsecas das causas obstrutivas, assim como identificar doenças hereditárias, como a doença renal policística do adulto.

Tabela 2: Achados típicos de proteinúria (ou albuminúria) e sedimentoscopia no diagnóstico diferencial de causas comuns de doença renal crônica.

Achados típicos de proteinúria (ou albuminúria) e sedimentoscopia no diagnóstico diferencial de causas comuns de doença renal crônica.
DRD= Doença renal diabética; DRH= Doença renal hipertensiva; DRCis= Doença renal cística; UO/NTI= Uropatia obstrutiva/Nefrite túbulo-intersticial; PNA= Pielonefrite aguda; GN= Glomerulonefrites; RAC= Relação albumina/creatinina.

Biópsia renal percutânea

Em algumas circunstâncias, haverá necessidade de avaliação microscópica do tecido renal obtido por biópsia para estabelecer o diagnóstico, orientar o tratamento e identificar o grau de atividade e cronicidade da doença renal encontrada, como, por exemplo, nos casos de doenças glomerulares.

Considerações sobre a prevenção e o tratamento da doença renal crônica

A obtenção de uma história médica detalhada, com especial atenção ao uso de medicamentos nefrotóxicos, o exame físico minucioso e a apreciação do estilo de vida (dieta e atividade física) são essenciais na avaliação e manejo da DRC. Uma vez identificada a doença, o paciente deveria ser submetido a uma avaliação diagnóstica detalhada para determinar a etiologia. As quatro causas mais frequentes de DRC são a doença renal hipertensiva, a doença renal diabética, as glomerulonefrites e a doença renal policística do adulto.

1. Controle glicêmico

No Brasil, o diabetes mellitus é a segunda causa de falência funcional renal (FFR). O controle glicêmico inadequado se associa com o desenvolvimento e a progressão da doença renal diabética, via alterações na retroalimentação tubuloglomerular, anormalidades no metabolismo de polióis e formação de produtos finais de glicosilação avançada. Cerca de um terço dos pacientes com diabetes desenvolverá a doença renal diabética. Assim, nos pacientes com DRC e diabetes, a manutenção do controle glicêmico adequado é fundamental para reduzir a ocorrência de proteinúria, a progressão da DRC e a incidência de FFR.

A partir dos resultados de estudos recentes sobre as complicações relacionadas ao controle glicêmico rigoroso (p. ex., risco aumentado de hipoglicemia), tem-se recomendado manter a hemoglobina glicosilada alvo ao redor de 7%, com valores até mais elevados aceitos para os pacientes com expectativa de vida reduzida ou com risco elevado de hipoglicemia. Além dos benefícios na redução da proteinúria e na diminuição da progressão da doença, o controle glicêmico é também importante na atenuação do risco cardiovascular. As diretrizes atuais recomendam o tratamento com os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) e com os bloqueadores do receptor da angiotensina (BRA) nos diabéticos com proteinúria associada ou não com a hipertensão arterial.

2. Hipertensão arterial

Pacientes com DRC apresentam alto risco de doença cardiovascular e o tratamento da hipertensão diminui esse risco. Atualmente, recomenda-se manter a pressão arterial <140/90 mmHg e <130/80 mmHg quando o paciente apresentar relação albumina-creatinina >30 mg/g.

Os IECAs e os BRAs são as medicações preferidas tendo em vista seu potencial de melhorar os desfechos em pacientes com DRC, particularmente naqueles com proteinúria >0,5 g/dia.  A combinação de IECA com BRA não é recomendada, pois aumenta o risco de ocorrência de eventos adversos e de hiperpotassemia.

Quando houver necessidade de associação medicamentosa, o uso de diurético é indicado por diminuir o volume de líquido extravascular, a pressão arterial, o risco de doença cardiovascular, além de potencializar os efeitos de IECA, BRA ou outra medicação anti-hipertensiva. A escolha do diurético depende do nível da TFG: os tiazídicos são indicados para TFG >30 mL/ min/1,73 m2 e o diurético de alça (p. ex., furosemida) quando a TFG<30 mL/ min/1,73 m2.

Nos casos em que associação de IECA ou BRA com diurético não for suficiente para o controle da pressão arterial, devem-se acrescentar outras medicações, como os bloqueadores dos canais de cálcio, os vasodilatadores (hidralazina, minoxidil) e os agonistas α2-adrenérgicos de ação central (clonidina e alfa-metildopa).

3. Acidose metabólica

A acidose metabólica (AM) é uma complicação importante, encontrada mais frequentemente quando a TFG <30 mL/ min/1,73 m2. A AM contribui para a progressão da DRC, na resistência à insulina e na diminuição do condicionamento cardiovascular, bem como impacta desfavoravelmente o metabolismo ósseo. Atualmente, recomenda-se corrigir a AM com terapia alcalina no paciente que apresentar bicarbonato sérico menor que o limite inferior à normalidade (<22 mEq/L).

4. Anemia

A anemia é uma complicação frequente e precoce no curso da DRC e decorre da diminuição da produção da eritropoetina. A anemia (normocítica e normocrômica com contagem baixa de reticulócitos) se associa com perda da qualidade de vida, hipertrofia do ventrículo esquerdo e complicações cardiovasculares em pacientes com DRC. A avaliação dos pacientes com DRC e anemia deveria incluir a determinação de hemoglobina, hematócrito, índices hematimétricos, contagem de reticulócitos, índice de saturação da transferrina, ferritina, vitamina B12 e ácido fólico. Quando presente, a deficiência de ferro deve ser corrigida sob pena de não resposta ao tratamento de reposição com a eritropoetina. 

5. Vitamina D e metabolismo do fósforo

Embora o metabolismo da vitamina D e do fosfato possa estar desbalanceado nos estágios iniciais da DRC, alterações significativas, geralmente, só ocorrem quando a TFG diminui para valores inferiores a 30-40 mL/ min/1,73 m2. A hiperfosfatemia e a deficiência de 1,25-dihidroxivitamina D induzem hiperparatireoidismo, que se associa com a osteodistrofia renal. As diretrizes atuais recomendam a combinação de restrição de fósforo na dieta, quelantes de fosfato e suplementação de vitamina D para a manutenção do cálcio e fósforo séricos nos limites normais.

6. Hiperpotassemia

A hiperpotassemia é uma complicação tardia e potencialmente grave na DRC, sendo observada mais frequentemente quando a TFG <30 mL/ min/1.73 m2. Os níveis normais de potássio (3,5-5,5 mEq/L) deveriam ser mantidos com dietas restritas em potássio e, quando necessário, acrescentando as resinas à base de poliestireno sulfonato de sódio. Nos casos mais graves de hiperpotassemia (potássio sérico >6,5-7,0 mEq/L), pode haver necessidade de medicações intravenosas (p.ex., gluconato de cálcio) e mesmo hemodiálise.

7. Tratamento dos fatores de risco cardiovasculares

Os riscos cardiovasculares são elevados em pacientes com DRC e, por conseguinte, os fatores de risco para aterosclerose deveriam ser agressivamente reduzidos. Adequações dos hábitos de vida, como cessação do tabagismo, 30 minutos de exercício/dia, limitação da ingesta alcoólica e manutenção do índice massa corporal na faixa de normalidade, deveriam ser insistentemente aconselhadas.

Ademais, controle adequado dos níveis de pressão arterial, avaliação e tratamento da dislipidemia e rastreio frequente para diabetes mellitus – que, se diagnosticado, deve ser tratado – são medidas a serem perseguidas frequentemente.

Precauções com o paciente que apresenta doença renal crônica

Cabe destacar que muitas das medicações prescritas e/ou seus metabólitos são eliminados pelos rins. Consequentemente, é importante o ajuste de dosagem baseado na TFGe de maneira a evitar ou reduzir a ocorrência de toxicidade medicamentosa ou complicações. Várias medicações podem causar lesão renal aguda e, por conseguinte, iniciar ou acelerar uma DRC já instalada. Assim, seria prudente descontinuar ou suspender temporariamente as medicações que podem causar diminuição aguda da filtração glomerular (p.ex., IECA, BRA, anti-inflamatórios não esteroides – AINE) e aquelas que apresentam potencial de complicações (p. ex., acidose lática por metformina) ou o uso de contraste iodado nos exames de imagem, particularmente num contexto clínico de risco aumentado de depleção de volume.

Os AINEs podem determinar redução aguda da TFG por inibirem prostaglandinas vasodilatadoras, especialmente em condições de desidratação e insuficiência cardíaca, circunstâncias que diminuem a perfusão renal. Adicionalmente, os AINEs se associam com quadros de nefrite intersticial alérgica com ou sem doença de lesão mínima, hiperpotassemia, hipertensão e edema e, quando utilizados cronicamente podem acelerar a progressão da DRC. Os AINEs deveriam ser evitados em pacientes que apresentam TFGe <30 mL/ min/1,73 m2.

A ocorrência de acidose lática em pacientes com DRC tem limitado o uso da metformina, uma importante medicação no tratamento do diabetes mellitus, particularmente quando a creatinina sérica for ≥1,5 mg/dL e ≥1,4 mg/dL em pacientes do sexo masculino e feminino, respectivamente. Contudo, as diretrizes atuais recomendam a descontinuação da metformina somente para pacientes com TFGe <30 mL/ min/1,73 m2 e sua utilização com cuidado quando a TFGe estiver entre 30 e 45 mL/ min/1,73 m2.

A DRC é o maior fator de risco para a nefropatia induzida por meio de contraste. Embora medidas como administração de N-acetilcisteína, minimização da dose do contraste administrado, expansão de volume com soro fisiológico isotônico ou bicarbonato e não administração concomitante de medicamentos que aumentam o risco de lesão renal aguda (AINE, diuréticos, IECA ou BRA, metformina) têm sido propostas para prevenir disfunção renal pelos agentes de contraste, nenhuma, isoladamente ou em combinação, tem se mostrado definitivamente eficaz. Assim, recomenda-se avaliar funcionalmente os rins cerca de 48-96 horas após a exposição, período de maior incidência de injúria renal aguda induzida por meio de contraste.

Como acompanhar o paciente com doença renal crônica

A frequência de monitorização da progressão da DRC e de suas complicações (acidose metabólica, anemia, hiperfosfatemia, hiperparatireoidismo secundário, desnutrição, hiperpotassemia) varia de acordo com a categoria da DRC (Tabela 3). A monitorização deve ser mais frequente em pacientes nas seguintes situações: 1. Categorias mais avançadas da DRC (4 e 5); 2.  Diminuição rápida da TFG (>5 mL/min/1,73 m2/ano); 3. Controle inadequado da pressão arterial; 4. Ocorrência de acidose metabólica; 5. Albuminúria acentuada (>1g/dia); 6. Exposição a uma causa conhecida de lesão renal aguda (p. ex., contraste iodado, antibiótico aminoglicosídeo, entre outros) e 7. Necessidade de introdução ou troca de intervenções terapêuticas para tratar a DRC, a hipertensão ou a proteinúria.

Dois outros aspectos clínicos que não têm recebido a devida atenção da comunidade nefrológica merecem destaque: o letramento em saúde (LS) e o comprometimento cognitivo. Ambos apresentam consequências indesejáveis no curso da DRC, particularmente no que se refere à qualidade de vida e à aderência medicamentosa.

O LS ou a habilidade de leitura, que permite ao indivíduo transitar no ambiente de saúde, é um tema relativamente novo, que vem ganhando espaço nas agendas de pesquisa e política de saúde, notadamente nos países desenvolvidos. Onde estudado, o LS inadequado associa-se com cuidados de saúde de pior qualidade e maior custo. Infelizmente, a maioria dos médicos não consegue identificar o problema e não têm preparo para lidar com o paciente que apresenta LS inadequado. Por ser comum e associar-se com desfechos clínicos indesejáveis, o LS inadequado deveria ser regularmente avaliado nos pacientes com doença renal.

Pacientes com DRC têm grande risco de desenvolver comprometimento cognitivo (CC), inicialmente leve (CCL), passível de identificação, mas ainda subdiagnosticado e subtratado. O CCL avaliado em pacientes não idosos com DRC em tratamento não dialítico, utilizando-se o instrumento Montreal Cognitive Assessment (MoCA) mostrou-se frequente e decorreu principalmente do comprometimento de funções executivas.

Encaminhamento do paciente com doença renal para acompanhamento nefrológico

A DRC é frequentemente não diagnosticada, seja nos estágios iniciais, quando a doença é frequentemente assintomática, seja nos estágios mais avançados, por inespecificidade dos achados clínicos. Assim, é fundamental identificar os grupos de risco e rastreá-los para DRC por meio da medição da TFGe e pesquisa da proteinúria e/ou hematúria.

O manejo clínico da DRC pode se tornar um desafio cativante para diferentes especialistas, particularmente quando realizado em colaboração com o nefrologista. Os pacientes deveriam ser encaminhados quando complicações tais como anemia, acidose metabólica, doença óssea e hipertensão arterial de difícil controle ocorrem no curso da DRC (Tabela 3). Adicionalmente, o nefrologista deveria ser consultado quando a DRC decorrer de doença renal complexa ou já apresente perda funcional avançada, assim como nos casos de patologias glomerulares ou tubulointersticiais agudas ou crônicas que requeiram tratamento com medicamentos imunossupressores.

Tabela 3: Recomendações para o encaminhamento ao nefrologista

Recomendações para o encaminhamento ao nefrologista
Estudos têm demonstrado uma relação favorável entre o tempo de acompanhamento nefrológico pré-dialítico e melhores desfechos clínicos após o início de Terapia Renal Substitutiva (TRS). Com a perda funcional, o nefrologista deveria ser consultado antes da progressão para as categorias 4 e 5 da DRC, ou seja, TFG <30 min/1,73 m2. Se assim for feito, haverá tempo suficiente para que ele discuta com o paciente e seus familiares as modalidades de TRS, como hemodiálise, diálise peritoneal e transplante renal, implemente intervenções psicossocio educacionais e referencie para confecção de fístula arteriovenosa ou implante de cateter peritoneal. Com o manejo adequado da DRC e encaminhamento nefrológico oportuno, é possível evitar hospitalizações, obstar o início do tratamento dialítico em condições de urgência ou emergência médica e possibilitar a realização do transplante preemptivo.

Indicações para terapia renal substitutiva

As principais indicações para iniciar a TRS são sobrecarga de volume não responsivo a diureticoterapia, pericardite, encefalopatia urêmica, sangramento secundário à disfunção plaquetária e hipertensão arterial não controlada com anti-hipertensivo(s). Outras indicações são a hiperpotassemia e acidose metabólica não controladas por medicamentos, sintomas urêmicos (fadiga, náuseas, vômitos, perda do apetite), desnutrição e insônia.

Conclusão

A hipertensão arterial e o diabetes mellitus são as principais causas de DRC no Brasil. O diagnóstico da DRC é baseado nos achados de TFGe <60 min/1,73 m2 e/ou documentação de lesão parenquimatosa renal (p. ex., proteinúria) e caracterização da cronicidade (persistência por 90 ou mais dias) das alterações morfofuncionais encontradas. O tratamento das complicações e comorbidades no curso da DRC permite estabilizar ou diminuir a velocidade de progressão da doença. O encaminhamento oportuno dos pacientes para acompanhamento nefrológico se associa com melhores desfechos clínicos em todo o curso da DRC e oportuniza a melhor escolha de TRS quando o paciente evoluir para o estágio de FFR.

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Tratamento da Doença Renal Crônica
Tratamento da Doença Renal Crônica

1. Como se define doença renal crônica (DRC)?

A definição e a classificação das diretrizes para DRC foram introduzidas pela Fundação Nacional do Rim (NKF) em 2002. Posteriormente, sofreram pequenas modificações pelo Grupo Internacional de Diretrizes de Doença Renal (KDIGO), melhorando os resultados globais.

Define-se DRC pela presença de dano renal ou diminuição da função renal por três ou mais meses, independentemente da causa. A persistência do dano ou a diminuição da função por pelo menos três meses é necessária para distinguir a DRC da doença renal aguda (DRA).

Danos renais referem-se a anormalidades patológicas, estabelecidas por meio de biópsia renal e exames de imagem, ou inferidas a partir de marcadores, como anormalidades do sedimento urinário – presença de albuminúria –, anormalidades do sedimento urinário, anormalidades anatômicas descobertas com exames de imagem, anormalidades patológicas descobertas com biópsia renal ou história de transplante renal.

A diminuição da função renal refere-se à diminuição da taxa de filtração glomerular (TFG), que é geralmente estimada (TFGe), utilizando creatinina sérica e uma das várias equações disponíveis. Ela é identificada na maioria dos casos por uma TFGe inferior a 60 ml/min por 1,73 m2.

2. Explique por que o paciente com DRC tem que ter mais que três meses de duração do quadro clínico.

O paciente precisa desse tempo pois, antes de três meses de duração, ele pode recuperar por completo ou parcialmente a função renal. Após esse período, a chance diminui de forma substancial, tornando o quadro crônico.

3. Explique o motivo de estar ocorrendo um aumento na prevalência e na incidência da DRC.

Com o avanço no tratamento da hipertensão arterial sistêmica (HAS) e do diabetes mellitus (DM), há um aumento na sobrevida dos pacientes portadores de tais comorbidades, crescendo, consequentemente, a quantidade de complicações relacionadas com essas próprias doenças, sendo uma delas a DRC. Além disso, o aumento de sobrevida da população aumenta a prevalência de todas as doenças crônicas relacionadas com a senilidade.

4. Como a DRC deve ser classificada?

A classificação da DRC se baseia na TFG e na albuminúria:

Estágios da TFG (ml/min/1,73 m2):

• G1 ≥ 90 – normal ou alto;

• G2 60 a 89 – diminuiu ligeiramente;

• G3a 45 a 59 – de leve a moderadamente diminuída;

• G3b 30 a 44 – moderada a severamente diminuída;

• G4 15 a 29 – gravemente diminuída;

• G5 < 15 – insuficiência renal (adicionar D se tratado por diálise).

Estágios de albuminúria (mg/dia):

• A1 < 30 – normal a moderadamente aumentada (pode ser subdividida para previsão

de risco);

• A2 30 a 300 – moderadamente aumentada;

• A3 > 300 – gravemente aumentada (pode ser subdividida em nefrótica e não nefrótica

para diagnóstico diferencial, gerenciamento e previsão de risco).

5. José, 60 anos, portador de HAS há 15 anos, vem apresentando TFG de 33 ml/min/1,73 m2 de superfície corpórea e albuminúria de 285 mg/g de creatinina. Qual é sua classificação quanto à DRC?

Paciente se encontra em G3b A2.

6. Lucas, 70 anos, portador de DM há 20 anos e de DRC no estágio G4 A1. Explique se o paciente apresenta ou não riscos para obter complicações devido à DRC e elucide os valores na TFG e na classificação da albuminúria esperados para tal quadro.

O paciente apresenta risco muito elevado. Os valores esperados para um paciente G4 A1 é TGF entre 15 e 29 ml/min/1,73 m2 e albuminúria menor que 30 mg/g ou menor que 3 mg/mmol.

7. Quais os benefícios da nova classificação da DRC?

As diretrizes da DRC mudaram o conceito de doença renal, passando de uma condição incomum com risco de vida, manipulada apenas por nefrologistas, para uma condição comum, com uma gravidade que merecesse atenção dos clínicos gerais e exigisse estratégias para prevenção, detecção precoce para melhor controle e diminuição de morbimortalidade. As diretrizes tiveram um efeito importante na prática clínica, na pesquisa e na saúde pública.

O objetivo do estadiamento da DRC é orientar o diagnóstico e o manejo, incluindo a estratificação do risco de progressão e as complicações da DRC. A estratificação de risco é usada como um guia para orientar quanto a tratamentos apropriados, gravidade, risco de progressão de doença e intensidade do monitoramento e educação do paciente.

8. Por que a creatinina não foi usada como critério de definição da DRC?

A creatinina isolada não é um bom parâmetro para a avaliação da função renal, pois ela pode permanecer na faixa normal em alguns grupos, como idosos, amputados, crianças e mulheres, quando houver redução da TFG. Além disso, ela varia de acordo com a massa muscular, independente da função renal. Por isso, a nova classificação defende que se use o valor de creatinina em fórmulas que estimem a TFG. Por outro lado, valores acima do normal de creatinina (homens acima de 1,5 mg/dl e mulheres acima de 1,3 mg/dl), via de regra, significam TFG reduzida. 

9. Quais são os principais indicadores na medida da função renal?

Os principais marcadores são ureia e creatinina.

10. Qual é o exame padrão-ouro para a medida de filtração glomerular?

Inulina.

11. Quais são os sinais radiológicos de uma nefropatia crônica?

Entre os achados, temos rim diminuído, aumento da ecogeniciade, diminuição da camada cortical do rim e perda da diferenciação corticomedular.

12. Quais são as principais causas de DRC com rim aumentado?

Entre as principais causas, temos: mieloma múltiplo, DM, amiloidose, vírus da imunodeficiência humana (HIV), uropatia obstrutiva, rins policísticos, anemia falciforme e esclerose sistêmica.

13. Em alguns casos, a DRC apresenta instalação aguda. Quais são as principais causas para esse fato?

As principais causas são necrose cortical aguda e glomerulonefrite rapidamente proliferativa.

14. Diferencie o quadro da insuficiência renal aguda (IRA) do quadro da DRC.

Insuficiência renal aguda (IRA) do quadro da DRC
Insuficiência renal aguda (IRA) do quadro da DRC

15. Explique como o tratamento farmacológico com inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) e bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA) auxilia no tratamento dos pacientes com dano renal.

Tais fármacos irão dilatar a arteríola eferente, diminuindo a pressão intraglomerular e a hiperfiltração glomerular. Além desse fator, esses medicamentos têm ação antifibrótica.

16. Esquematize a fisiopatologia da DRC.

Esquema sobre a fisiologia da DRC
Fisiologia da DRC

17. Qual a relação entre a DRC e o risco cardiovascular?

A DRC, em qualquer estágio, está associada ao maior risco cardiovascular. Essa associação pode ser explicada pelas características dessa população, que apresenta elevada incidência dos fatores de risco tradicionais, como DM, hipertensão arterial e síndrome metabólica. O risco de um evento cardiovascular ser fatal é maior do que um indivíduo vir a necessitar de diálise. O risco de evento fatal é semelhante ao dos indivíduos que têm diagnóstico de insuficiência coronariana. Esta é uma prerrogativa importante do manuseio desses pacientes.

18. Quais são as principais complicações em pacientes com DRC?

São complicações principalmente cardiovasculares, como acidente vascular cerebral (AVC), infarto e arritmia.

19. Qual a fisiopatologia da DRC?

A DRC é uma síndrome que ocorre como o evento final de uma lesão que envolveu mais de 80% do parênquima renal. Independente do evento inicial, o que essas lesões têm em comum é a perda de unidades renais funcionantes, de néfrons funcionantes. Uma patologia aguda extensa, como uma glomerulonefrite, e uma doença crônica progressiva, como a nefropatia diabética, podem levar ao aparecimento da DRC, pois ambas têm em comum a perda de massa renal funcionante.

20. Como a perda de massa renal funcionante leva ao aparecimento da DRC?

Esta é a chamada teoria do néfron remanescente. Uma perda inicial ou o resultado de um processo crônico, que comprometa mais de 80% do parênquima, desencadeia alterações adaptativas que se caracterizam inicialmente pela hipertrofia com hiperfunção dos néfrons ainda saudáveis – os néfrons remanescentes. Estes, porém, submetidos ao estresse hemodinâmico sustentado, são acometidos de afluxo de células inflamatórias e síntese de mediadores inflamatórios (citocinas, quimiocinas e angiotensina II).

O estresse hemodinâmico e o processo inflamatório lesam tanto o glomérulo como as células tubulares e o interstício renal, criando assim uma alça de retroalimentação de lesão. Como resultado, mais glomérulos são perdidos e há também atrofia das células tubulares e fibrose do interstício. Esse mecanismo de retroalimentação de lesão é responsável por uma das características mais importantes da DRC: seu caráter progressivo. Uma vez presente algum sinal clínico sustentado de lesão renal, como redução da TFG ou proteinúria, as alterações adaptativas à lesão ocorrida vão progressivamente lesar cada vez mais o restante do parênquima não afetado inicialmente, levando, em um período de tempo variável, à falência renal.

21. Há fatores de risco definidos para DRC? Quais?

Sim. As situações consideradas de risco estão listadas a seguir e diferenciadas entre modificáveis e não modificáveis. Dessas condições, as mais importantes são: diagnóstico de hipertensão e DM, idade avançada, história familiar de DRC e transplante renal prévio. São esses grupos que merecem maior atenção e monitoramento ao surgimento da DRC.

Fatores de risco para o desenvolvimento de doença renal
Fatores de risco para o desenvolvimento de doença renal

22. Quais as principais causas de doença renal crônica DRC?

A nefropatia diabética e a nefropatia hipertensiva são as causas mais comuns de DRC. Vale ressaltar que a DRC pode resultar de: 1. uma doença que cause lesão renal progressiva e sustentada, como a nefropatia diabética; 2. de afecções que causem episódios repetidos de injúria, como as agudizações da glomerulopatia lúpica; ou 3. de doença que, mesmo após a sua cura, causou perda tão importante de massa renal que as alterações adaptativas hemodinâmicas e inflamatórias, que ocorrem em paralelo às outras fisiopatologias citadas, levam à perda inexorável da função renal. Outras causas de DRC incluem: glomerulonefrites, pielonefrite crônica, obstrução do trato urinário e doença policística. Entre as causas mais raras, destacam- se mieloma mútiplo, nefrite tubulointersticial, amiloidose e nefropatia isquêmica.

23. Como se manifesta clinicamente a DRC?

Nos estágios iniciais, quando o tratamento é mais efetivo, a DRC é oligossintomática ou assintomática. Porém, à medida que a doença progride, surgem as complicações da doença e os sinais e sintomas começam a se tornar evidentes. Por isso, a importância da abordagem e do diagnóstico precoce.

24. O que é síndrome urêmica?

É o conjunto de sinais e sintomas decorrentes da presença de DRC e de suas complicações. A presença e a intensidade dos sintomas dependem do grau de perda de função renal e da suscetibilidade de cada indivíduo.

Sinais e sintomas da síndrome urêmica
Sinais e sintomas da síndrome urêmica

25. Cite as principais alterações hematológicas no paciente com DRC.

Na DRC, ocorre anemia devido a múltiplos fatores, entre eles, inflação da DRC, gerando diminuição no estoque e na oferta de ferro, bem como na produção da eritropetina, o que acarretará em uma alteração na produção da hemácia.

Outro fator é a predisposição para sangramento em razão do acúmulo de ureia e dos compostos granidínicos que geram disfunção plaquetária. Além desses fatores, o paciente apresentará disfunção imune.

26. Explique as causas da hipertensão nos pacientes com DRC.

O paciente com DRC apresenta hipertensão devido a dois mecanismos:

1. aumento da volemia – há aumento na pré-carga, dessa forma, ocorrerá hipertensão; 2. diminuição da produção de óxido nítrico no rim – provoca vasoconstrição, o que gerará a hipertensão.

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